A doença invisível que paira entre nós desde o início do ano acarretou, até hoje, a morte de quase um milhão de pessoas no globo e de mais de uma centena de milhares só em nosso país. Imagina-se que são mais de um milhão de pessoas que perderam entes amados. Estas, que ficam em vida, precisam se haver com tal ausência. Mesmo quem afortunadamente não sofreu a morte de uma pessoa querida, não escapou de perdas. Para falar somente das perdas psíquicas, são elas as mais diversas possíveis. Alguns adultos perderam o ambiente de trabalho, com sua mesa, colegas ou clientes, iluminação específica e o ar condicionado exagerado que insistia em atacar a rinite alérgica; outras crianças e adolescentes perderam o olhar daquele professor atencioso ou do outro, chato, perderam também o cutucão no amigo ao lado entre risos e cumplicidade; há os que perderam a caminhada permeada por encontros com os cachorros da vizinhança ou a chance de conhecer o sobrinho recém-nascido; para dizer o mínimo.
A pandemia nos furtou e furta muito. E por mais supérfluas que possam parecer algumas perdas, se comparadas com as milhares de vidas findadas, todas provocam eventos psíquicos de elevada importância. A perda de uma pessoa amada ou de uma abstração equivalente, como a liberdade, um ideal, a esperança em algo etc., gera em algumas pessoas a reação afetiva denominada luto, que jamais ocorre de forma patológica, apesar do característico afastamento da conduta normal com a vida. Sob as mesmas influências, outras pessoas, patologicamente predispostas, podem apresentar a melancolia ao invés do luto, quadro esse descrito cuidadosamente por Freud.
“A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante expectativa de punição”. Freud, 1917(1915), pg. 172.
O luto contém os mesmos traços que a melancolia, exceto pela afetação da autoestima. Ambos os processos produzem grande sofrimento e exigem a retirada de investimentos libidinais do mundo externo, mas somente na melancolia a autoestima é rebaixada. No luto, o exame de realidade do Eu demonstra que o objeto amado não mais existe e, portanto, toda libido deve ser retirada das conexões com tal objeto, gerando uma intensa oposição que afasta a realidade e produz apego ao objeto amado por meio de uma psicose de desejo alucinatório. (FREUD, 1917[1915]). O destino não patológico desse processo é que, paulatinamente, a solicitação da realidade seja atendida, não sem requerer grande tempo e investimento. Cada um dos aspectos do objeto a que a libido se achava ligada é superinvestido e, posteriormente, desligado. Isso explica os rompantes de raiva e acessos de tristeza e choro experimentados pelo enlutado, por exemplo.
No luto, o sujeito sabe clara e conscientemente qual foi o objeto perdido, já na melancolia, mesmo quando o objeto perdido é um ente amado, o sujeito não é consciente do que perdeu nesse alguém, em outras palavras, parte do que foi perdido permanece inconsciente. Além disso, o rebaixamento da autoestima, o empobrecimento do Eu na melancolia nos mostra que para o melancólico o que se torna pobre e vazio é o próprio Eu, enquanto que no luto, é o mundo que se empobrece. Diante da perda do objeto, o melancólico se insulta a si mesmo, se define incapaz e desprezível, um ser que merece ser punido e rejeitado. Degrada a si mesmo diante dos outros sem pudor e tem pena daqueles que precisam conviver com ele. Até mesmo seu passado não escapa de ser aviltado. Soma-se a isso, muitas vezes, insônia, recusa de alimentação e afastamento da pulsão de vida. Até mesmo existe um prazer em se autorrecriminar diante dos outros. A perda se dá no próprio Eu, para o melancólico.
A clínica com o melancólico mostrou para Freud no início do século passado que o que de fato era recriminado pelo analisando não se concernia a ele próprio, mas ao objeto por ele perdido:
“Para eles (os melancólicos), queixar-se é dar queixa, no velho sentido do termo. Não se envergonham nem se escondem, pois tudo de desabonador que falam de si mesmos se refere, no fundo, a outra pessoa.” (FREUD, 1917[1915], pgs. 179 e 180).
Na vida do melancólico, alguma de suas escolhas de objeto, uma ligação libidinal a alguém, foi abalada por influência de algo que se perdeu no ser amado, como uma ofensa vinda dele ou uma decepção com ele, por exemplo. A partir disso, o natural seria a retirada da libido desse objeto e seu deslocamento para outro, como ocorre no luto, não sem sofrimento. Porém, o investimento objetal era frágil, foi cancelado, mas a libido recuou para o próprio Eu, onde estabeleceu uma identificação entre o Eu e o objeto abandonado, de modo que “a sombra do objeto recaiu sobre o Eu, e a partir de então este pôde ser julgado por uma instância especial como um objeto, o objeto abandonado” (FREUD, 1917[1915], pg. 181). Isso ocorre porque a escolha de objeto feita pelo sujeito, sua ligação de libido a certo objeto, é feita sobre base narcísica, de modo que, ao se apresentarem dificuldades relativas ao investimento objetal, sucede a regressão do mesmo ao narcisismo. Dessa forma, a relação amorosa com o objeto, mesmo que por uma via regredida e doentia, não é abandonada, é mantida de forma inconsciente e narcísica, renegando a realidade impossibilitando o luto até que algum trabalho psíquico, como a psicanálise, possa desvelar todo esse enredo libidinal.
O que define se a reação à perda de objeto será o luto ou a afecção melancolia, ainda não é totalmente esclarecida e determinada pela psicanálise, mas se sabe que quando há predisposição para a neurose-obsessiva a ambivalência, presente em toda relação de amor, se torna conflituosa. Os sentimentos negativos relativos ao amado são rechaçados pelo amante, esses alojam-se no inconsciente e ressurgem à consciência por meio das autorrecriminações como, muitas vezes, a fantasia de que foi o próprio indivíduo que teria causado – inconscientemente, desejado – a perda do objeto. Quando tal perda refere-se à morte, a autorrecriminação fica ainda mais forte, por vezes até mesmo aproximando o melancólico do suicídio, em suas formas mais extremas.
A melancolia é uma formação de compromisso perigosa entre desejo e defesa, que leva o sujeito a afastar-se de tudo aquilo ligado à vida, como por exemplo, a análise ou a psicoterapia, que, em muitos casos, seriam a única possibilidade de “cura” para o sujeito. Portanto, se faz premente o tratamento do sujeito que sofreu perdas, seja pela relação terapêutica com os seus ou no tratamento psicanalítico profissional, de modo que haja o cuidado para identificar qualquer tipo de recriminação de si mesmo diante da perda, o que pode sinalizar o adoecimento melancólico do sujeito.
Levando em conta os poucos recursos psíquicos que grande número de pessoas tem apresentado para lidar com as dificuldades da nossa sociedade atual e a grande catástrofe que temos enfrentado especialmente nos últimos meses por conta da COVID-19, é de extrema importância o trabalho psicanalítico na ajuda da elaboração das perdas sofridas por todos nós. Mesmo aqueles que com seus próprios recursos psíquicos seriam capazes de elaboração de luto, mesmo que precariamente, hoje tem ainda mais dificultado esse processo por conta da pandemia em que estamos inseridos. A impossibilidade de visitar o doente querido em seu leito de tratamento hospitalar ou de morte impõe importantes dificuldades ao sujeito para cuidar de seus afetos, seus investimentos libidinais no ser amado perdido e suas questões inconscientes para com o mesmo. O contato físico com o sujeito adoecido ou perdido, mesmo depois de sua morte, auxilia na elaboração de muitos sentimentos e vivências relativas à ligação objetal e ao futuro abandono salutar da mesma. Ver o sujeito amado, falar para ou com ele sobre qualquer coisa que venha a mente durante o encontro, assim como ocorre na sessão de análise, é uma rica oportunidade de se haver com sentimentos negativos relativos ao objeto e à relação objetal, o que representa uma grande chance de elaborar a ambivalência presente em toda as relações amorosas. Diante de tais dificuldades impostas ao luto e das milhares e milhares de mortes e perdas acometidas a todos nós, ou seja, de lutos carentes de elaboração ao redor do mundo, o papel da psicanálise ganha importância central para a saúde psíquica de cada um de nós, principalmente dos mais frágeis.
O trabalho psicanalítico oferece oportunidades ímpares de elaborações de conflitos psíquicos que, se mantidos como estão, podem originar afecções psicogênicas como a melancolia, por exemplo. Isso se dá por que a técnica psicanalítica nos presenteia com algumas ferramentas pouco comuns em outros tipos de relações afetivas. Uma delas é a permissão e orientação ao paciente para que fale espontaneamente todo e qualquer conteúdo que lhe ocorra durante sua presença junto ao analista. Por mais resistência que as defesas inconscientes possam impor a essa atitude do analisando, o conteúdo inconsciente vai encontrando seu caminho entre as palavras, apesar daquelas reprimidas, entre os sonhos e os atos falho. Eis então, outras duas ferramentas que temos. Esta última, o ato falho, pode e deve ser aproveitada pelo analista para ir desvelando, junto ao paciente, conteúdos inconscientes que surgem quando é dita uma palavra em lugar de outra que se “desejava” dizer ou quando o paciente esquece de realizar o pagamento ao analista, por exemplo. Na outra mão está a ferramenta da interpretação de sonhos, com a qual é possível desvelar conteúdos que teimam em não se apresentar claramente de outra forma. No sonho, a suspensão temporária e parcial do Super-eu revela, deslocados e condensados, desejos inconscientes reprimidos há muito, já que o sonho é uma das maneiras que o psiquismo encontra de realizar desejos disfarçadamente à consciência.
Tais ferramentas psicanalíticas só podem ter efeito se surgir no paciente um fenômeno que ocorre espontaneamente em todas as relações humanas, mas que é desvelado e extremamente rico em análise: a “transferência”, isto é, “ele (o paciente) dirige para o médico uma certa medida de impulsos afetuosos, muitas vezes mesclados de hostilidade, que não se baseia numa relação real e que, como evidenciam todos os detalhes de seu surgimento, só pode remontar a velhas fantasias e desejos que se tornaram inconscientes”. (FREUD, 1910, pg. 280).
A transferência direciona para o analista a apresentação de sintomas, que, surgidos no setting analítico ganham a chance de alcançar melhor desenlace, já que perpassam pela figura do analista, fermento catalítico, nas palavras de S. Ferenczi (1909), “que temporariamente atrai para si os afetos liberados no processo” (FREUD, 1910, pg. 280).
Tal melhor desenlace dos desejos inconscientes trazidos à consciência pelo trabalho psicanalítico é diverso e Freud, em “Cinco lições de psicanálise” (1910), nos apresenta três deles. No primeiro, a repressão é substituída por uma condenação realizada com melhores recursos (FREUD, 1910), já que, então, o Eu encontra-se mais maduro do que quando realizou a repressão do instinto anteriormente e, portanto, tem maior capacidade de dominar aquilo que lhe é hostil. Outro desfecho do trabalho psicanalítico é a sublimação, processo em que, ao invés de perder fontes de energia psíquica por meio das repressões, o indivíduo não bloqueia a energia dos impulsos infantis e aproveita-os como elemento propulsor para atividades sublimes, como a investigação intelectual e a arte, por exemplo. Por fim, o terceiro desfecho apresentado pelo pai da psicanálise é a satisfação direta de certa parte dos impulsos libidinais reprimidos, que contemplam o alcance de felicidade individual pertinente às metas da vida em nossa cultura e às nossas raízes animais.
São esses alguns dos desfechos para os desejos inconscientes perturbadores dos quais as pessoas que se oferecerem e se dedicarem ao trabalho psicanalítico poderão usufruir. De certo, muitas vezes não será fácil nem prazeroso, tampouco veloz, mas são poucas as experiências tão ricas e cheias de vida que podemos nos dar quanto o é um bom trabalho psicanalítico.